O que está por trás do caso do delegado baleado na cabeça em Guarujá – Prisma


Quase ninguém prestou atenção, mas o tiro na cabeça do delegado Thiago Selling da Cunha, 40 anos, da Polícia Federal, embute uma série de questões gravíssimas, às quais a sociedade ignorou.
O que ele estava fazendo lá? Não se quis saber. É pena. A esposa dele, grávida de oito meses, igualmente não mereceu cuidado algum, embora obviamente humana, mas sem direitos na sua solitária dor.
O tiro calibre 9 milímetros, que acertou o delegado, foi disparado por um traficante de drogas em Guarujá, palco de sucessivos assassinatos de policiais, igualmente ignorados por quem se diz preocupado com a barbárie humana, tratada de forma absolutamente seletiva. A estupidez em grau máximo se manifesta todo dia, o comportamento de policiais é questionado diariamente, mas o extermínio criminoso feito por bandidos não é enfrentado como se deveria.
É mais do que hora de a sociedade definir o que quer. Não de engolir eventuais abusos policiais direcionados a desvalidos e seus tons de pele. Combater uma coisa e fazer de conta que não existe outra?
De vez em quando, as forças policiais exageram na dose, em todo o país, e tal comportamento não é privilégio de ninguém. Se a face for apenas e limitadamente ideológica, temos registrado casos, inúmeros, da arbitrariedade invadir os espaços democráticos de Direito, sob vista grossa de governantes que se consideram modelos para a humanidade. A contradição é palpável.
Ao delegado da Polícia Federal, portanto. Ele estava lá porque tinha uma missão, ou seja, cumprir mandados de prisão contra seres que fizeram opção para viver do crime com alto poder de remuneração.
O crime que seduz e corrompe os mais variados escalões, pois bem sabemos: só é possível existir crime organizado com a participação de agentes do Estado. Fato incontroverso.
O que fazia o delegado federal em Guarujá, se a sua Polícia, de Estado, investiga apenas crimes contra a União? Não se procurou a resposta. Como não se dá resposta a perguntas que nem foram ainda formuladas, como gostam de fazer pseudos “especialistas”.
Isso é desgastante e irritante, porque o pior portador de deficiência visual é aquele que não quer ver. Na flagrante incoerência, olham de soslaio para a ponta do dedo quando se aponta a Lua. Preferem o olhar para o umbigo e, mesmo na floresta, dirigem o olhar para apenas uma árvore. Mas no mundo do crime, pensar e agir assim é coisa de kamikaze que nos afeta.
Vamos então para o caso do delegado federal baleado. Estava em Guarujá e veio de Santos. O que tem a ver? Um porto, o maior do país. Em 2022, dali zarparam 162,4 toneladas de cargas.
O que tem o delegado a ver com isso? Muito. O porto de Santos tornou-se também um dos pontos preferidos do tráfico internacional de cocaína.
Para que tenhamos melhor ideia do significado disso, no período 2016-2022 a Receita Federal fez apreensões gigantescas, nada menos do que 126 toneladas da droga, oculta em contêineres, os cofres de carga, de grandes dimensões.
As apreensões foram feitas pouco antes de os navios cargueiros zarparem, cheios de carnes, milho, suco de laranja, celulose e outras. Seis toneladas, somente até junho deste ano. Destino: países da Europa, onde os encarregados dos mecanismos de controle constatam que o porto de Santos é, nada mais, nada menos, do que a segunda maior válvula de escape do planeta em cocaína para o outro lado do Atlântico.
Novamente: por que o delegado federal Thiago estava em Guarujá? Porque os traficantes da Baixada Santista entraram, como tentáculos de um descomunal polvo, para a travessia da droga. Ou como uma mitológica hidra de várias cabeças: se uma for cortada, logo nasce outra no seu lugar. Assim é a hidra-tráfico.
Combatê-la exige uma ação conjunta entre polícia, agentes aduaneiros e fiscais pelo mundo. Há necessidade de intercâmbio permanente. Entre todos, sinais notórios de deficiência, contra alto grau de eficiência por parte dos traficantes. É um negócio de grandes proporções: atualmente, um grama do pó é vendido na Europa a 40 (R$ 215) e 70 euros, equivalentes a R$ 375. Entre outras técnicas, traficantes misturam cocaína com sacas de soja.
Os destinos são variados, como Roterdã, Antuérpia, Valença e outros portos europeus. Em muitos casos, quantidades enormes do pó são ocultadas por mergulhadores nos cascos dos navios, antes do início da viagem.
Esse formato do tráfico-exportação atraiu traficantes locais de menor proporção diante do tráfico internacional, muito mais lucrativo. Uma conversão movida a muito dinheiro. E essa é a principal causa de drástica alteração do crime na Baixada Santista.
A NOVA MÁFIA
Como isso acontece? De novo, o delegado federal baleado em Guarujá. A estrutura do tráfico internacional passou por adaptações logísticas em vigor: galpões, por eles chamados de “casas bomba”, passaram a ser utilizados para armazenar a droga. A nova estrutura transformou anões em gigantes, ou seja, deixaram a venda local, no varejo, para o tráfico internacional, muito superior e rentável em todos os sentidos.
A metástase da estrutura é bem maior do que se possa imaginar. Conta com a participação direta da organização criminosa PCC, o Primeiro Comando da Capital, que já age como uma grande e mafiosa empresa, negociando até com a poderosa italiana N’drangheta, atualmente mais forte do que a Cosa Nostra, que tinha entre seus expoentes o famoso Tomaso Buscetta, preso no Brasil e extraditado para a Itália, onde fez delações destruidoras para o juiz Giovani Falcone, assassinado pela Máfia. Em recompensa, ganhou operação plástica, nova identidade e passou a viver em Nova York, onde morreu com câncer.
Fontes do pó, colhido a partir de folhas e refinado em laboratórios clandestinos com éter e acetona, continuam sendo o continente latino-americano, Colômbia, Peru e Bolívia. O Brasil é um dos corredores mais utilizados.
O buraco é muito mais profundo, a ponto de a Polícia Federal estar fazendo treinamentos com policiais da Bélgica e outros países europeus. A problemática questão é que apenas uma amostra da carga de cada navio é escaneada, passa pelo olfato de cães e minuciosa inspeção. Além disso, como existem as exportações legais, os traficantes montam empresas que existem apenas na fachada, para fazer o tráfico camuflado.
Para que isso possa funcionar, e tem funcionado, o tráfico se infiltra no porto por meio de trabalhadores no local, funcionários e agentes de navegação, transporte e segurança, e ainda decisivos agentes da lei, que corrompidos atuam a favor do crime. A infiltração também chega a funcionários da Alfândega. Informações preciosas são negociadas e compradas, sepultando assim qualquer ponto de vulnerabilidade.
O caso do delegado baleado é muito grave. Mapeia toda essa situação, tornando ridícula a preocupação setorizada apenas com a repressão policial. O cenário real, oculto para míopes, significa extraordinário consumo de drogas, aqui e fora, sinais de crises existencial, vide a Cracolândia, envolvendo muitos jovens. É evidente que os zumbis, escravos do vício, deveriam ser considerados mais importantes do que a impiedosa sociedade econômica.
O narcotráfico, como estamos vendo, é dominador e poderoso, economicamente forte e capaz de abrir portas e janelas onde menos se poderia imaginar. Deixou de ser poder paralelo. Passou por uma metamorfose. Agora é poder de fato.
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